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27
Mai13

DANIEL DE SÁ Auto-retrato e bibliografia

Isabel Botelho

 ... "E se, culturalmente, sou apátrida, no mais permaneço ilhéu e português, aceitando a fatalidade do destino com que nasci como se eu mesmo fosse o responsável por ele". Daniel de Sá - 1992

E hoje quis a "fatalidade do destino" levar-nos Daniel de Sá para outra dimensão, que não esta que conhecemos... Que descanse em paz!
Não encontro melhor forma de homenagear o grande vulto incontornável da cultura açoriana e da língua portuguesa, senão utilizando as próprias palavras de Daniel de Sá, que aqui reproduzo, com o maior respeito, pelo próprio, e pela sua família, a quem endereço os meus sentidos pêsames.
Daniel Augusto Raposo de Sá nasceu na Maia, S. Miguel, Açores, a 02/03/1944 e faleceu a 27/05/2013.

Na galeria da fama dos maus romances, há um que começa mais ou menos desta maneira: "Era uma noite escura e tempestuosa". Estava assim aquela em que nasci, quando o apocalipse da guerra contava já os seus últimos milhões de mortos, e o petróleo ia substituindo o azeite de gata, que dava mais cheiro que luz. Nesse dia, quadragésimo nono aniversário do decreto da autonomia de Hintze Ribeiro - João Franco - D. Carlos, os aliados continuavam a cercar o mosteiro de Monte Cassino, e Pio XII completava sessenta e oito anos de vida e cinco de Papa.
Mas logo aos dois anos tive de deixar a Maia e os meus boizinhos de carrilho, porque meu pai fora, como muitos mais, procurar a imitação do "Eldorado" no aeroporto de Santa Maria, e nos fizera carta de chamada, pois as ilhas estavam então separadas por alfândega e outras dificuldades, como estados independentes. Começava a cumprir-se o fado de uma família de emigrantes, que haveria de esboroar-se toda, nessa e nas décadas seguintes, por este mundo de Deus e de legítimas ambições humanas.
Dos primeiros tempos na ilha-mãe, feita de pedra e cal, recordo vagamente os meus caracóis louros e compridos, um coelhinho de latão que fora broche e se tornou no meu brinquedo preferido e quase único, o encanto indizível de um "dakota" de plástico que o Menino Jesus me deu, creio eu, por um Natal em que cheguei à chaminé ainda a tempo de o ver fugir, e uns versos com que me estreei na poesia, cantando para a vizinha da frente segundo as normas de rima que meu pai me ensinara na véspera.
Fui crescendo com essa cisma na cabeça, e cheguei a passar horas em desafios renhidos de redondilha maior com o Firmino, meu colega de quarta classe na escola de Santana, onde a boa da professora tinha de aturar mais de três dezenas de rapazes e raparigas, desde os que andavam na bê-à-bá até aos que papagueavam significados, rios, reis, serras e linhas férreas, entremeando a sua exausta paciência com um "calem-se" para nós os dois, sem que ela sonhasse o que dizíamos e como o dizíamos, a voz contida.
É de pouco depois o meu primeiro romance falhado, uma aventura de índios e "cowboys" que acabou quando o assalto a um rancho coincidiu com a minha falta de paciência ou de inspiração para o resto.
Mas o melhor eram os relatos de futebol ouvidos e discutidos no Clube Asas do Atlântico e, sublimidade de quantas sensações havia na nossa infância, as "matinés" do Atlântida Cine, onde se arranjava quase sempre um lugarzinho, mesmo que não se tivesse o dinheiro para o bilhete, porque o Senhor Cardoso abria a porta à fila da nossa gula impaciente quando percebia que, a respeito de entradas pagas, estava tudo conversado.
Mas em fins de 1958 aconteceu o primeiro grande desgosto da minha vida: o bondoso padre Artur perdeu-se no naufrágio do "Arnel"; e, poucos meses depois, meu pai morreu. O tempo começou então a passar muito depressa. O quinto ano feito no Externato da Ribeira Grande e o curso do Magistério Primário foram uns instantes e dei por mim, de repente, professor nos Fenais da Ajuda. Andei por lá quatro anos, e comecei a escrever para o jornal do saudoso Cícero de Medeiros, com um pseudónimo que eu imaginara muito antes e que, feito do meu verdadeiro nome e de uma das designações daquela freguesia, por interessante coincidência se justificava plenamente: Augusto de Vera Cruz. Cumpri depois esse dever absurdo de aprender a guerra, nas Caldas da Rainha a recruta e a especialidade em Tavira, mas escapei à imposição de exercer na prática os conhecimentos adquiridos, porque passei o resto do serviço militar no batalhão dos Arrifes. Depois de mais um ano como professor, desta vez na Maia, cumpri a seguir o meu roteiro de nómada, entrando para a congregação missionária dos Combonianos, e por lá estive, quase três anos em Valência e alguns meses em Granada. Aprendi a ignorância de filósofos e teólogos e criei o vício físico da sesta, de que adoeci sem remédio.
E aqui estou, definitivamente disposto a ser rural e sedentário, que Deus, afinal, está em toda a parte e o Mundo inteiro vem cá ter com a gente.
Entretanto, casei: faltavam vinte e cinco dias não sonhados para que se cumprisse a plenitude de Abril. Pai de três filhos que vão crescendo e de seis livros maneirinhos, sinto que me saí melhor (talvez por serem uma obra a dois) com aqueles do que com estes, mas ainda não perdi a esperança de ser tão feliz por uns como pelos outros.
Tenho pena de não ter nascido a tempo de escrever o "Estrangeiro" ou "As Vinhas da Ira", de compor o "Messias" ou a "Sagração da Primavera", de pintar "A Peregrinação de Santo Isidro", ou de esculpir "Os Burgueses de Calais", de formular a teoria da Relatividade ou de descobrir a penicilina, de erguer o Taj Mahal, de criar o poema "Tabacaria" ou, ao menos, de inventar a maionese.
Meteram-me na política, onde tenho sido de tudo um pouco, menos membro do governo regional, porque, além de outras razões evidentes, de certeza não serviria para isso.
Sou de uma curiosidade sempre insatisfeita, e teria estado disposto, se tal fosse possível, a ficar olhando, durante milhões de anos, a criação do Universo, só para saber como foi. Trocaria todas as palavras que até hoje disse, e que os amigos aplaudiram, para pensar por momentos, sem esquecer depois, com o cérebro do primeiro homem que foi capaz de pensar.
Não sei se posso dizer que sou puro, como os justos do antigo Egipto no julgamento de Osíris. Sei que não queimei o templo de Diana nem ordenei nenhum campo de concentração. Posso invocar uns quantos nãos de bondade, mas faltam-me os sins seguros da justiça positiva.
Todavia, a catedral da Literatura existe, com os seus demónios e os seus santos para todas as devoções. E, com tantos livros para ler, há quem gaste o seu tempo e o seu talento a discutir-lhes a forma, a escola ou a literatura menor a que pertençam. No entanto, cada vez que eu entro, por exemplo, na igreja do mosteiro da Batalha, ajoelho-me primeiro porque aquele templo foi feito para louvarmos a Deus e não o estilo ou os homens que o construíram. E se, culturalmente, sou apátrida, no mais permaneço ilhéu e português, aceitando a fatalidade do destino com que nasci como se eu mesmo fosse o responsável por ele.

(Este texto foi escrito em 1992. Entretanto, os filhos cresceram em idade e em inteligência e a obra de Daniel de Sá, materializada em livros e outras publicações, em forma de crónicas, contos, romances, ensaios, novelas... também cresceram em número e em tamanho.)


Algumas publicações:
Génese (novela), edição da D.R.A.C. da Secretaria Regional de Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 1982: Durante a Guerra Civil espanhola, Don Francisco Calvera Ten, um padre da província de Valência, teme os Republicanos e não gosta dos Nacionalistas. E deu-lhe em duvidar do próprio Deus…
Sobre a Verdade das Coisas (crónicas-contos), edição da Junta de Freguesia da Maia, 1985: A vida rural de S. Miguel. A ficção ao serviço da realidade, a realidade ao serviço da ficção. Mas onde o real é bem mais forte do que o imaginário.
O Espólio (novela), edição Signo, Ponta Delgada, 1987: Se uma ilha dos Açores sofresse um ataque nuclear, que poderia resultar daí para a felicidade ou infelicidade do Mundo? Talvez nada mais do que o Prémio Pulitzer para a melhor reportagem sobre a tragédia.
A Longa Espera (contos), edição Signo, Ponta Delgada, 1987: E se o Natal fosse um homem vindo de longe, de onde os rios correm sempre, para se sentar diante de uma fonte seca, num sacrifício de implorar a chuva aos Céus e até à sua própria morte? E se o Natal fosse e não fosse o resto?…
Bartolomeu (teatro), edição da D.R.A.C. da Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 1988: Um dos maiores navegadores portugueses de todos os tempos julga-se com direito de ir à Índia. Razões de Estado tiram-lhe esse privilégio em favor de Vasco da Gama, um capitão intransigente. O drama de Bartolomeu Dias, que o não mereceu.
Um Deus à Beira da Loucura (novela), edição da D.R.A.C. da Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 1990: Se Cristo reencarnasse e fosse condenado a um campo de concentração nazi, resistiria melhor do que um prisioneiro ateu?
Ilha Grande Fechada (romance), edição Salamandra, Lisboa, 1992: João peregrina à volta da ilha no cumprimento de uma promessa e na despedida da sua terra antes de emigrar para o Canadá. E acaba por compreender que "sair da ilha é a pior maneira de ficar nela".
A Criação do Tempo, do Bem e do Mal (ensaio), edição Salamandra, Lisboa, 1993: Uma visão agnóstica do Tempo. A justificação do Bem e do Mal, numa perspectiva teísta. Algumas questões mais difíceis da Doutrina e da Moral católicas, segundo a opinião de quem acredita em Cristo e na Sua Igreja, dita Universal, Apostólica e Romana, sem ter a certeza de que Ela seja infalível.
Crónica do Despovoamento das Ilhas (e Outras Cartas de El-Rei) (crónicas históricas), edição Salamandra, Lisboa, 1995: A vida nos primeiros tempos de haver gente nos Açores, ouvida dos velhos cronistas e contada com a ironia da ignorância e da suposta superioridade de ser homem do século XX.
E Deus Teve Medo de Ser Homem (novela), edição Salamandra, Lisboa, 1997: Vinte séculos de humanidade não ensinaram ao Homem a ser humano. O lobo de si mesmo continua tão pérfido como os crucificadores romanos.
As Duas Cruzes do Império – Memórias da Inquisição (romance), edição Salamandra, Lisboa, 1999: O absurdo da Inquisição foi praticar o mal em nome de Deus. O paradoxo do nosso século tem sido destruir milhões de homens e mulheres em nome da Humanidade.



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